Em mais um trabalho lançado neste "Ano Simonal", agora é a vez da biografia escrita pelo Ricardo Alexandre, um de meus ídolos no jornalismo musical, e que, coincidentemente, também divide comigo a mesma paixão pelo Ronnie Von. Gentilmente ele cedeu a belíssima introdução do livro para eu postar neste humilde blog, trecho bem significativo pois quase nomeou o trabalho, que acabou levando o nome de "Nem Vem Que Não Tem - A Vida E O Veneno De Wilson Simonal".
O livro vai ser lançado oficialmente neste dia 23 de outubro e já está em pré-venda na Cultura, Saraiva, Siciliano e Submarino. Também será possível comprá-lo em um stand que a Globo Livros monta no Sesc Pinheiros no final de semana em homenagem ao cantor que começa amanhã e vai até o domingo. Segue abaixo a introdução:
Este homem é um Simonal
Em meados de 1969, ao longo de várias semanas, a lendária revista Realidade destacou um de seus melhores repórteres, Mylton Severiano, para acompanhar o dia a dia do cantor Wilson Simonal. Com belas fotos e textos longos, Severiano registrava o auge do sucesso de um artista, aquele que já fazia tempo era “o maior showman brasileiro”, e cuja estrela não parava de subir. O título da reportagem não poderia ser mais apropriado: “Este homem é um Simonal”.
“Ser um Simonal”, naquele tempo, transmitia imediatamente ao leitor todos os atributos que o personagem da matéria alimentava havia quatro anos. O sucesso monumental, comparável apenas ao de Roberto Carlos; a capacidade aparentemente sem fim de gerar sucessos (“Sá Marina”, “Tributo a Martin Luther King”, “Nem vem que não tem” e, avassalador naquela época, “País tropical”); o famoso suingue, que colocava para dançar numa mesma pista a socialite e sua faxineira; o estilo pessoal, com roupas caras compradas na Dijon e do uísque Royal Salute sem gelo e sem água; a capacidade de comandar a plateia como se fosse seu próprio coral de apoio, tanto em uma boate da moda, em seu programa na TV Record, em teatros ou no Maracanãzinho; sua Mercedes do ano, conversível, vermelha e preta como o Flamengo; o menino pobre de Areia Branca que acabou duetando com Sarah Vaughan e arrancando elogios de Quincy Jones em Paris; o Simonal empresário, que montou seu próprio escritório para ter controle total sobre a sua carreira; a imagem poderosa, capaz de ajudar a vender lubrificantes e formicidas da Shell; o homem negro por quem suspiravam as loiras da alta sociedade. Ou, como resumiu o Jornal do Brasil numa série de seis reportagens biográficas: “Aquele cara que todo mundo queria ser”.
Exatos 30 anos depois, em abril de 1999, Wilson Simonal, magro, frágil e envelhecido, está no fundo de uma pequena casa de shows de São Paulo, o Supremo Musical. Protegido pelas sombras, assiste à apresentação do coletivo Artistas Reunidos, do qual fazem parte seus dois filhos homens, Wilson Simoninha e Max de Castro, então se lançando na carreira artística. Naquele dia, Simonal entrou após o início do show e saiu antes que acabasse. Voltou para o carro chorando, porque achava que não podia cumprimentar os próprios filhos em público ou mesmo ser reconhecido junto deles: tinha medo de que a imagem dos garotos ficasse associada à dele e que isso pudesse arruiná-los.
“Ser um Simonal” tinha um significado muito diferente daquele ano de 1969. Significava ser proscrito do ambiente artístico com força e rancor, como nunca havia acontecido antes - e não voltaria a acontecer. Significava ser indesejado por onde passasse, a ponto de fotógrafos se recusarem a fotografá-lo e outros artistas se negarem a pisar no mesmo palco que ele; ser “exilado em seu próprio país”, como definia; ser um espectro, um fantasma, ter sua contribuição apagada da memória oficial da música brasileira - como se milhões de discos não tivessem sido vendidos, milhões de pessoas não tivessem cantado com ele nos shows, nem o assistido pela televisão. Era sinônimo de alcoolismo, impontualidade, amargor e solidão; significava ser mau pai, mau marido, amigo ingrato; um “crioulo que não soube o seu lugar”. E acima de tudo, e mais certo do que tudo isso junto, significava ser um dedo-duro dos tempos do regime militar, um homem que, não contente com a fama e a fortuna, teve o mau-caratismo de “entregar” colegas artistas para os órgãos de repressão do governo militar, que os torturava e os exilava.
Este livro é fruto de dez anos de pesquisa sobre o que significou “ser um Simonal”, ao longo de 62 anos de vida, para o cidadão Wilson Simonal de Castro e para o Brasil. Ao mesmo tempo, este trabalho tenta desvendar como um país inteiro pôde mudar de opinião tão violentamente sobre um de seus maiores ídolos, baseando-se às vezes em fatos, às vezes em lendas e outras vezes em sentimentos complexos como racismo, paixão e inveja. E, claro, investiga nas cicatrizes da infância, na vida pessoal do adulto e na contextualização histórica de sua música os mistérios que levaram à ascensão e à queda de um artista. Talvez o mais completo, certamente o mais simbólico artista que o Brasil já viu - e que, de repente, não quis mais ver.
Ricardo Alexandre
Setembro de 2009